COMO O PÁSSARO SOLITÁRIO

OS SALMOS, NOSSO ESPELHO
14 – COMO O PÁSSARO SOLITÁRIO
─ Perdi o sono e estou gemendo; estou como o pássaro solitário no telhado. Todo dia meus inimigos me insultam; eles se enfurecem e fazem imprecações contra mim(Salmo 102,8-9).
– “Não é fácil ser cristão!”. Jesus nos disse que, para entrar no Reino de Deus, a porta era estreita e o caminho íngreme (Mt 6,13-14), e alertou-nos sobre as dificuldades que encontraríamos: No mundo tereis aflições (Jo 16,33).  Mas também nos prometeu que estaria conosco todos os dias até o fim do mundo (Mt 28,20); garantiu que nos deixaria a sua alegria e a sua paz (Jo 16,22) e nos animou a viver de esperança: Mas tende coragem! Eu venci o mundo (Jo 16,33).
Hoje há  – como lembrávamos ao falar do leão e o dragão – uma dificuldade especial para um cristão que queira ser autêntico e fiel: o ambiente materialista, paganizado, de grande parte da sociedade; a difusão, imposta como se fosse um dogma, de ideias e comportamentos próprios de uma “cultura” frontalmente contrária ao Evangelho. É fácil, por isso, que um bom cristão se sinta só, como um pássaro solitário no telhado, em meio a colegas, parentes e amigos, que não só não compartilham os seus valores como até mesmo os desprezam,ridicularizam e combatem: fazem imprecações contra mim.
Disso falava o Papa Bento XVI numa entrevista: «Existem ambientes, e não são poucos, nos quais hoje se precisa de muita coragem para se declarar cristão… Cresce o perigo de uma ditadura da opinião, e quem não quer acatá-la é isolado e marginalizado»[1]. Como um pássaro solitário!
Também no livro Jesus de Nazaré, o mesmo Papa escreveu: «O que fazem todos é imposto ao indivíduo como pauta de comportamento. O mundo não suporta a resistência, quer colaboracionismo»[2].
Que fazer?. A resposta é simples, embora não seja fácil: imitar os primeiros cristãos.
Num mundo totalmente pagão e muito semelhante ao nosso em seus  costumes, eles eram vistos com um misto de admiração e aversão. Não eram “como todo o mundo”. Se, por um lado, os pagãos ficavam cativados pelo exemplo de amor que eles irradiavam, por outro, a recusa das práticas e costumes daquele ambiente e as virtudes que praticavam contrastavam totalmente com os que os pagãos queria impor como normais: eram castos, despendidos dos bens materiais, fiéis no casamento, generosos com os pobres e doentes… Isso chocava, incomodava. Os primeiros três séculos do Cristianismo são chamados, com toda a propriedade, “a era dos mártires”.
No entanto, esses pássaros solitários, tantas vezes incompreendidos e levados ao matadouro como animais, não pararam de crescer, e foram pouco a pouco o fermento da transformação daquela sociedade; sem violência, só com a força da fé e do amor. O Império pagão, em poucos séculos, achou-se cristão.
Penso que hoje Deus nos pede imitar especialmente três atitudes dos primeiros cristãos: a autenticidade do seu exemplo, a compreensão para com todos e o coração aberto lealmente à amizade.
  • A autenticidade do exemplo. A grande força moral dos cristãos não era a palavra nem a polêmica, mas a silenciosa pregação do exemplo. Um dos mas antigos mártires, Santo Inácio de Antioquia, dava um lema para os cristãos que viviam no meio da sociedade pagã: «Atuar de acordo com a palavra de Jesus, e manifestá-la pelo silêncio»[3], ou seja, deixar que as ações falem por nós.
Sem discussões, e, ao mesmo tempo, sem ceder um milímetro no que se refere às suas convicções, sem querer fazer média nem rebaixar as exigências da  fé, os cristãos podem dar-se e conviver com todos. Sua caridade, sua firmeza serena e sorridente, seu espírito de serviço, a perfeição com que procuram trabalhar, a sua solicitude para com as carências e sofrimentos dos outros, acabam por atrair os que com eles convivem.
Um retrato desse ideal, encontramo-lo em um documento muito antigo, a Carta a Diogneto, uma apologia do Cristianismo – uma bela peça literária – que o bispo Quadrato teria dirigido, no século II, ao imperador Adriano.
Lemos nesse escrito: «Os cristãos não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por língua ou costumes. Não moram em cidades próprias, nem falam uma língua estranha, não têm algum modo especial de viver… Morando em cidades gregas e bárbaras, conforme as circunstâncias de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto,  testemunham um modo de vida singular e admirável…
»Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito. Estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra, mas têm a sua cidadania no Céu… São injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem e são punidos; são condenados, e se alegram como se recebessem a Vida…
»Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo».[4]
  • A compreensão para com todos. É a segunda atitude positiva de que falávamos. Ninguém pode sentir-se próximo de uma pessoa que não o compreende. Pelo contrário, é um prazer conviver e trabalhar com alguém que valoriza a nossa boa vontade e compreende os nossos defeitos.
Para compreender, é preciso ter humildade e um coração generoso. «Em qualquer ser humano – escreve são Tomás de Aquino – existe sempre algum aspecto que nos permite considerá-lo superior a nós, segundo as palavras do Apóstolo [são Paulo]: “Levados pela humildade, tende-vos uns aos outros por superiores a vós mesmos” (Fl 2,3). De acordo com estas palavras, todos os homens devem honrar-se mutuamente»[5].
Sem compreensão, não pode haver diálogo com os que não partilham da nossa fé nem dos nossos valores morais. Diálogo que não consiste em fazer concessões que acabam negando as verdades católicas, mas em saber escutar com respeito as opiniões divergentes, e, num clima de paz e de troca de ideias, quando isso for possível, expor as nossas crenças, de modo claro, sereno e pacífico.
Como escreve são Josemaria, «com a polêmica agressiva, que humilha, raramente se resolve uma questão. E, sem dúvida, nunca se consegue esclarecimento algum quando, entre os que disputam, há um fanático»[6].
Alertando os que não sabem compreender, santo Agostinho dizia: «Repreendes os outros, e não reparas em ti mesmo. Acusas os outros, e não te examinas. Colocas os outros bem diante dos teus olhos, e a ti colocas-te escondido atrás das tuas costas. Quando Deus te julgar, dirá: “Far-te-ei dar meia volta e te colocarei diante de ti próprio. Então te verás e chorarás»[7].
  • O coração aberto à amizade. É óbvio que a compreensão e o diálogo são dois batentes a que escancaram a porta da amizade. Com essas qualidades, duas pessoas com credos e convicções diferentes, podem conviver, conversar, compartilhar momentos excelentes da vida (conheço vários casais que, possuindo crenças diferentes, se dão maravilhosamente bem).
Se há pontos de discordância, há também muitos pontos em comum com qualquer pessoa de boa vontade. Esses pontos comuns são a ponte que, sem trair a fé, pode unir os corações. E levá-los a cooperar juntos, com a maior harmonia e entusiasmo, em empreendimentos pelo bem da família, da sociedade, da pátria, da ciência… Amar – dizia Saint Exupéry – não é olhar um para o outro, mas olhar ambos na mesma direção. Quantas metas valiosíssimas podem ser encaradas e conquistadas em conjunto, se existe amizade leal entre pessoas que, a despeito das suas divergências em ideias importantes, são capazes de compreender, de ajudar, de valorizar os outros e trabalhar com eles.
«Amar – diz a teóloga católica alemã Jutta Burggraff – não consiste simplesmente em fazer coisas para alguém, mas em confiar na vida que há nele. Consiste em compreender o outro com as suas reações mais ou menos oportunas, os seus medos e as suas esperanças. E fazê-lo descobrir que é único, digno de atenção, e ajudá-lo a aceitar o seu próprio valor, a sua própria beleza, a luz oculta que existe nele, o sentido da sua existência. E consiste em manifestar ao outro a alegria de estar a seu lado»[8].
Esta é a amizade do autêntico cristão. Essa foi a amizade, o amor sincero, com que os primeiros cristãos conquistaram o mundo.

[1] O sal da terra, p. 176
[2] Vol. II, p. 116
[3] Carta aos Efésios, 15
[4] Carta a Diogneto, cap. V, em Padres apologistas, Ed. Paulus, 1995
[5] Suma Teológica, II-II, q. 103, a. 2-3
[6] Sulco, n. 870
[7] Sermão n. 17
[8] Para uma cultura de diálogo, conferência pronunciada em 2009

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