A experiência espiritual e a atenção ao mistério de Deus



Certo é que todos os homens, de todos os tempos e lugares fizeram e fazem a experiência do transcendental. Ele é um ser aberto ao totalmente Outro, o qual é realidade ao mesmo tempo externa a este mundo, e interna ao homem. Há uma vivência fundadora do pensamento religioso no ser humano, sem intermédio de uma ordem externa, confessional, ou teológica. 


Em termos psicológicos, a experiência religiosa é, desde sempre, uma dimensão intrínseca de nosso psiquismo, isto é, da alma humana na medida em que ela experimenta uma realidade sagrada, ou seja, uma comoção perturbadora que funda a realidade como sagrada. Tais realidades humanas, sejam as boas e aprazíveis, mas principalmente as mais difíceis, como as tragédias e a morte de um membro da família, são carregadas de sacralidade, da presença de Deus.

Em meio a um mundo confuso, onde as experiências interiores não são mais valorizadas, encontra-se um ser humano fragmentado em busca de um sentido para a vida, para a sua própria existência e a do mundo a sua volta. Ainda que traga os traços do criador, e sua alma clame por uma realidade superior que o oriente e sirva de sentido, o homem moderno traz uma desconfiança a respeito do divino e da possibilidade de fazer uma verdadeira experiência de Deus e das coisas sagradas. Para muitas religiões e pensamentos religiosos, tal encontro só é possível por mediações religiosas, interseccionado por ritos e representantes religiosos. Esta realidade não é ilegítima ou descabida, no entanto é momento segundo no processo de experiência espiritual.

O conceito de experiência espiritual de K. Rahner nos conduz para uma realidade transcendental que se deixa entrever no concreto da vida cotidiana de todo homem. Talvez a consciência religiosa coletiva não consiga abarcar, com facilidade, a possibilidade de uma experiência direta de Deus por causa de centenas de anos de catequese puramente sacramental e institucional. Rahner não nega a religião ou religiosidade como caminho, mas em sua teologia espiritual, acena para uma realidade primordial, a da categoria da experiência imediata, a qual o homem comum, sem ser um místico aos moldes de Francisco e Tereza, faz nas coisas mais triviais do seu dia. Se é verdade que todo homem é aberto ao mistério sagrado e absoluto de Deus, então deve haver um instrumental pré-existente nele, não externo, que o possibilite ter acesso às realidades espirituais. 

Neste ponto para Kal Rahner a chave de leitura são os dramas e perguntas mais profundas da pessoa, através de sua inteligência e livre vontade. Trata-se de uma mística ou espiritualidade encarnada, uma mística “natural”, na qual o mundo ao redor e, sobretudo, o mundo interior, gritam a presença e a ação de Deus. Seja o nome que for: graça, inabitação, efusão, êxtase, etc. o que realmente ocorre com todas as pessoas é uma experiência do mistério do infinito que há nele; ele sabe que as respostas últimas e soluções para as crises não é ele, mas Outro.

Com a experiência de autotranscendência, o ser humano necessariamente se abre a Deus e busca Nele nutrir-se. Deus se oferta a alma humana e se faz a ela presente. Ao perceber tal presença em sua vida, o homem faz experiência da graça divina que se antecipou a ele, possibilitando a abertura e docilidade interiores. E é exatamente aqui que se problematiza a questão da experiência divina. Parece que necessária e absolutamente o indivíduo só pode fazer experiência mediada de Deus, ou seja, através de alguém ou alguma coisa. Ora, nossa pastoral tem tido práticas que reforçam essa inverdade. 

Temos inculcado em nossos fiéis a necessidade de ter algum ministro para rezar por ele, ou para conduzir um momento de oração, quando na verdade ele mesmo é capaz de orar e num diálogo afetuoso com o Pai do céu descobrir os tesouros celestes. Ou ainda a prática de novenas e instrumentalização da fé, como promessas e orações “sentimentais” feitas em ambientes pentecostais, as quais levam a uma experiência falsa, ou senão, opaca de Deus. 

Nossa pastoral deve dar mais autonomia ao fiel cristão que busca fazer uma experiência de Deus. Devemos possibilitar que se tenha mais atenção ao mistério que nos envolve e perpassa, liberando essa ruim conjunção de experiência de fé com as práticas religiosas institucionalizadas. Não que a igreja e sua doutrina sejam desnecessárias, mas que a pastoral faça cada um perceber seus próprios caminhos, ou seja, as vias pessoais pelas quais Deus fala ao indivíduo de modo único e particular. É preciso educar para a mística. 

Que a religião cumpra seu papel de religar a Deus e não ser o fim último como tem ocorrido em nossas instituições. Precisamos reeducar o nosso povo a ter olhos espirituais que vejam as pegadas, os traços de Deus em sua própria história de vida. O perigo que se corre nesse ultrapassado modelo pastoral é manter-nos num emaranhado de relações meramente humanas nas igrejas, sem profundidade e com uma sempre maior alienação; alienados de nós mesmos, alienados dos outros e lamentavelmente, alienados de Deus. Com a instrumentalização religiosa, o crente ficou preso às experiências de outros, que não a dele mesma, e às dos irmãos de fé. É mais uma religião social que espiritual, no sentido de mística, ligada ao transcendente.

De fato, a prática religiosa é a linguagem concreta pela qual tentamos expressar aquela experiência íntima que fizemos de Deus. No entanto, precisamos encontrar tempo para a interioridade, para o silêncio, para um encontro tranquilo e amoroso com a causa fundante de nossa existência. Posso ir à missa, posso rezar o terço e as novenas, mas elas são tão somente formas de externar o que vai no meu interior, o que foi fecundado e colhido pelo Espírito de Deus em mim. Se nossa prática pastoral inverte os momentos, gera-se uma imagem confusa de Deus e se sombreia a religião.

Fomentar a vida interior, ou vida espiritual é consagra-se a ser investigador do mundo, tanto o exterior quanto o interior, e com o auxílio da luneta da fé encontrar o amor profundo e incondicional de Deus. É conseguir enxergar em nós e no mundo a presença velada e revelada de Deus que sempre nos atrai e se apresenta maior que nós, maior que o mundo.

Essa experiência espiritual se dá, na prática, quando, por exemplo, olhamos com os olhos de Deus a senhorinha quase cega que lhe visita por simplesmente se sentir bem em sua casa; ali ela faz experiência da acolhida e nós a de hóspedes do próprio Deus que nos revela a fragilidade e doçura de seu coração. Ou então, quando todos se voltam contra você e em momento de vulnerabilidade, alguém lhe lança um olhar compassivo, lhe acolhe e diz: estou contigo, nunca se esqueça disto! Aquele abraço forte lhe dá, ainda que sem palavras, garantias que tudo está bem, que Deus não te condena mesmo quando todos teriam razões para isso.

Quanto mais criamos a capacidade de ver a manifestação de Deus nas realidades intramundanas, mais é diminuída a dicotomia sagrado x profano. O sagrado e o profano constituem dois modos de ser no mundo, duas situações assumidas ao longo da história religiosa. 

O homem toma consciência do sagrado porque este se manifesta, como outra coisa absolutamente diferente do profano, do usual, do cotidiano. Qualquer ação com um significado vital, como nascimento e morte, fome e alimentação, plantio e colheita, etc. participa de certo modo do mundo sagrado, ou seja, é vital porque é parte do sagrado, vem de um Outro. Exemplo primordial para nós cristãos é a encarnação do Verbo, no qual se encontram harmoniosamente integradas as duas categorias, a sagrada ou divina e a humana, ou profana. 

A partir da humanização do Verbo divino, nenhuma coisa ou pessoa lhe escapa, pois, em si, já fazem parte do sagrado, porque foram assumidas como realidades espirituais no ‘coração’ de Deus. Jesus Cristo é a manifestação da integração perfeita das realidades terrestres e espirituais, e mostra que não são dicotômicas entre si, mas locais da manifestação de Deus. Portanto, toda ação é sagrada, pois a vida vem Dele e para Ele há de voltar. Encontrando-se, o ser humano encontra a Deus. Amando o outro, a Deus ele está a amar. Assim descobrimos que viver é sagrado, e quanto mais vivemos, integrando-nos no mundo, mais encontraremos rastros do sagrado que nele habita. No fim de tudo só Ele restará! 



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