A utopia de um mundo onde caibam todos os mundos
Vivemos, para todos os efeitos, em um mundo globalizado. E o que se convencionou chamar de “Globalização” é, no fundo, uma construção ideológica do neo-liberalismo a serviço do mercado que se caracteriza por uma tríplice pretensão: onipotência, onipresença e onisciência. Talvez a melhor caracterização que temos da Globalização seja aquela feita com invejável rigor e plasticidade por E. Morin. Segundo ele, estamos navegando rumo a uma era planetária movida por duas hélices. As hélices não remontam propriamente à imagem do avião, mas aos modelos helicoidais do nosso DNA.
A primeira se encontra sob a hegemonia do poder-dominação e é impulsionada por quatro motores: a ciência sujeita à técnica que, por sua vez, é submetida à indústria, que, por sua vez, é subordinada à lógica do lucro. Deste modo, segundo Morin, a nave espacial Terra é colocada em movimento por esses quatro motores interconectados. A segunda distingue-se pela luta pelos direitos da pessoa humana, pelo direito dos povos à soberania, aos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade, democracia.
Não resta dúvida que a Globalização em seu estado atual traz em seu próprio bojo uma gama enorme de transformações de tal sorte que se torna cada vez mais legítimo afirmar que o “nosso tempo” se caracteriza por uma “grande transformação”, cujos sintomas são perceptíveis em fenômenos como: a inovação constante, a crise da sociedade salarial, a financeirização do mundo, a sociedade do risco, do controle e do biopoder, o fim do social numa sociedade dita “pós-social”.
Todavia, o principal resultado da Globalização neoliberal e do Imperialismo é, sem dúvida, a pobreza estrutural na qual vive nada menos que 2/3 da inteira população do Planeta. Precisamente aqui, se revela o caráter estruturalmente excludente da Globalização neoliberal. E essa situação de exclusão se agrava ainda mais quando se tem presente que estamos falando da exclusão não só de pessoas e de setores da população, mas de povos e continentes inteiros. Na sua raiz mais profunda, portanto, a globalização econômica provoca assimetria em todas as esferas: economia, política, cultura e também religião.
Temos testemunhado recentemente o despertar de um verdadeiro imperialismo autoritário com discurso e prática fundamentalistas. Usam-se cada vez mais expressões eufemistas como: “império da paz”, “império da liberdade”, “império da democracia”, “império da civilização”, “civilização do Bem contra o reino do mal”, “guerra infinita”. Nesse sentido, o “novo imperialismo” encarna a síntese de todos os fundamentalismos: político, econômico, cultural e religioso. Embora os fiéis guardiães desse imperialismo sejam os Estados Unidos da América com seu potente exército – e isso ficou claro após as invasões do Afeganistão e do Iraque – seus reais detentores são os representantes do capitalismo global. E estes, por sua vez, são apoiados e sustentados pelos mais poderosos organismos internacionais como o Banco Mundial, o FMI, Organização Mundial do Comércio, etc…
O recurso a alguns dados poderá ilustrar melhor essa situação estrutural de exclusão. Em 1960, para cada pessoa considerada rica no mundo havia 30 pobres; hoje, essa situação se radicalizou de maneira brusca, pois, para cada rico, existem hoje 80 pobres no mundo. Dos 6.200 bilhões de habitantes, cerca de 2.852 bilhões de pessoas vivem na pobreza, dentre os quais, 1.200 se encontram na pobreza extrema. Os que vivem, portanto, na pobreza corresponderiam aproximadamente a 46% da população do Planeta.
Só para se ter uma ideia da gravidade do problema: segundo a FAO, a cada dia, morrem 35.000 crianças de fome, isto é, 10 vezes o número de pessoas mortas na destruição do World Trade Center. Na América Latina, a situação é alarmante: 44,4% da inteira população vivem na pobreza e 19,4% na extrema indigência, perfazendo um total de 63,8% de excluídos. O recurso a estes índices e cifras parece altamente esclarecedor na medida em que nos coloca diante do quadro real e estrutural da Globalização neoliberal, pois, na verdade, dos aproximadamente 6 bilhões de habitantes do inteiro Planeta, apenas 1,5 bilhão de pessoas gozam de todos os benesses produzidos pelos sofisticados meios técnico-científicos enquanto que 4,5 bilhões se encontram numa situação de total exclusão.
Tais constatações levam-nos a refletir seriamente sobre os conflitos provocados pela atual dinâmica da sociedade contemporânea. O primeiro deles seria entre a reprodução da humanidade e os destinos do Planeta. Encontramo-nos, para todos os efeitos, encurralados dentro de um beco-sem-saída: de um lado, nossas sociedades têm cada vez mais necessidade da Terra e de seus recursos; de outro, o Planeta suporta cada vez menos nosso crescimento. Não menos grave é o conflito entre a reprodução do capitalismo e da humanidade. A reprodução do capitalismo está cada vez menos relacionada com a reprodução da humanidade, pelo fato do capitalismo se autonomizar cada vez mais da sociedade na qual se encontra inserido.
E, por último, a Terra e as pessoas humanas que nela habitam estão à mercê de uma economia que se impõe como a fatalidade do “nosso tempo”. Trata-se de um acirrado conflito entre a reprodução do capitalismo, incluída naturalmente parte da humanidade ligada a suas atividades e a seus produtos, e a reprodução da Terra com o conjunto de suas criaturas. Numa palavra, as prioridades do capitalismo neo-liberal são radicalmente distintas daquelas orientadas pela ética e pelos valores humanos.
Consciente desta alarmante situação, pergunta-se E. Morin: “Seremos capazes de ir rumo a uma sociedade-mundo portadora do nascimento da própria humanidade? Eis a questão. A humanidade está em formação. Há possibilidade de rechaçar a barbárie e realmente civilizar os humanos? Será possível salvar a humanidade, realizando-a? Nada está definido, nem o pior”. Talvez seja esse, de fato, o grande desafio que nos é lançado em meio à conjuntura atual: a humanidade não está conseguindo mais gerar a humanidade. Nesse caso, a segunda hélice da qual falava Morin precisa ser reforçada pela inteligência e consciência humanas para que a nave espacial Terra não se torne um Titanic.
Toda a reflexão que fizemos até agora desembocará espontaneamente na eleição de uma perspectiva a partir da qual compreender esta complexa realidade e se posicionar coerentemente face à mesma. Como criaturas limitadas que somos devemos renunciar a toda e qualquer pretensão de totalidade. Enquanto tais, nós poderemos, na melhor das hipóteses, ensaiar, quem sabe, achegas distintas à realidade no seu complexo. Tais achegas, contudo, serão sempre parciais e fragmentadas. Nada além de simples clareiras que se abrem a partir de distintas perspectivas parciais. Esse é nosso limite, mas é também nossa chance, possibilidade privilegiada de compreensão da realidade e do conseqüente engajamento responsável em seu complexo tecido.
Além do mais, uma específica parcialidade inerente à fé cristã fica por conta da consciência da imprescindibilidade de se manter a fidelidade à parcialidade evangélica testemunhada por Jesus de Nazaré. Como cristãos somos desafiados a manter aquela sadia solidariedade para com Jesus na sua parcialidade de pregador enviado a anunciar a Boa-nova aos pobres e aos excluídos. A assunção dessa parcialidade evangélica permitirá a nós cristãos ver determinadas coisas que só se vêm a partir da condição na qual eles se encontram. E o que é ainda mais importante: levar-nos-á a uma correção da própria maneira de pensar e de conceber as grandes questões que assolam a grande maioria de nossas populações condenando-as à trágica condição de vítimas indefesas e inocentes.
Talvez hoje, mais do que nunca, os pobres têm sido colocados à margem de nossas relações econômicas, políticas, sociais e culturais a ponto de serem completamente excluídos de toda e qualquer convivência humana e social. Talvez a maior exclusão seja a de sequer prestar ouvidos aos clamores dos pobres por mais vida. Até mesmo seu clamor tem sido hoje silenciado mediante o recurso a tantos expedientes escusos e sofisticados. Chega-se a provar hoje em não poucos ambientes uma resistência ferrenha a sequer mencionar a existência dos pobres. Eles se encontram, de fato, completamente excluídos até de nossas agendas nesse princípio de século. Enquanto cristãos, inseridos na realidade do continente latino-americano neste limiar de século XXI, jamais poderemos ignorar aquela preciosidade que aflorou no coração mesmo de nossas comunidades que é “a opção pelos pobres contra a sua pobreza” como a caracterizou magistralmente o Documento de Puebla, aprofundando assim os sulcos abertos pela Conferência de Medellín.
Diante da gravidade desta situação, qual a posição do Cristianismo que se caracteriza como uma religião com pretensões de universalidade? Tendo presente que as maiores contradições e assimetrias se dão no Terceiro Mundo, onde se encontra 70% dos cristãos, o que teríamos nós cristãos a dizer diante do caráter eminentemente escandaloso desta situação? Qual seria nossa contribuição específica no processo de superação desta exclusão estrutural? Estamos dispostos a fomentar uma globalização não dos interesses do mercado e do capital transnacional, mas da solidariedade e da esperança, da justiça e da paz, dos direitos humanos, sociais e ecológicos? Seria utópico, de nossa parte, engajar-se na construção de um mundo onde caibam todos os mundos? T
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