COMO DEVE PROCEDER OS PRINCIPIANTES NESTA NOITE ESCURA?


1. No tempo das securas desta noite sensitiva, Deus Opera a mudança já referida: eleva a alma, da vida do sentido à do espírito, isto é, da meditação à contemplação, quando já não é mais possível agir com as potências ou discorrer sobre as coisas divinas. Neste período, padecem os espirituais grandes penas. Seu maior sofrimento não é o de sentirem aridez, mas o receio de haverem errado o caminho, pensando ter perdido todos os bens sobrenaturais, e estar abandonados por Deus, porque nem mesmo nas coisas boas podem achar arrimo ou gosto. Muito se afanam então, e procuram, segundo o antigo hábito, aplicar as potências com certo gosto em algum raciocínio; julgam que, a não fazer assim, ou a não perceber que estão agindo, nada fazem. Mas, quando se aplicam a este esforço, sentem muito desgosto e repugnância no interior da alma, pois esta se comprazia em quedar-se naquele sossego e ócio, sem obrar com as potências. Deste modo, perdendo-se de um lado, nada aproveitam do outro; e, em procurar seu próprio espírito, perdem aquele, que tinham, de tranquilidade e paz. São nisto semelhantes a quem deixasse a obra já feita para recomeçar a fazê-la, ou a quem saísse da cidade, para de novo entrar nela; ou ainda, ao que larga a presa a fim de tornar a caçá-la. Bem se vê que é escusado querer insistir: a alma nada mais conseguirá por aquele primeiro modo de proceder, conforme já dissemos.
2. Tais almas, neste tempo, se não acham quem as compreenda, arrepiam caminho, abandonando-o, ou se afrouxando. Pelo menos, acham impedimento para prosseguir, com as repetidas diligências que fazem em querer continuar na meditação discursiva; cansam-se e afligem-se demasiadamente, imaginando que se acham nesse estado por suas negligências pecados. Tudo quanto fazem lhes é inútil, porque Deus já as conduz por outro caminho, — o da contemplação, diferentíssimo do primeiro, pois um é de meditação e discurso, e outro não cai sob imaginação ou raciocínio.
3. As pessoas que se encontram neste estado, convém consolar-se em paciente perseverança, sem se afligirem. Confiem em Deus, pois Ele não abandona aos que O buscam com simples e reto coração. Não lhes deixará de
dar o necessário para o caminho até conduzi-los à clara e pura luz do Amor. Esta lhes será dada por meio da outra noite escura, — a do espírito, — se merecerem que Deus nela os introduza. 4. O modo como se hão de conduzir os espirituais nesta noite do sentido consiste em não se preocuparem com o raciocínio e a meditação, pois já não é mais tempo disso. Deixem, pelo contrário, a alma ficar em sossego e quietude, mesmo se lhes parece claramente que nada fazem, e perdem tempo, ou se lhes afigure ser a tibieza a causa de não terem vontade de pensar em coisa alguma. Muito farão em ter paciência e em perseverar na oração sem poder agir por si mesmos. A única coisa que a alma há de fazer aqui é per-manecer livre e desembaraçada, despreocupada de todas as notícias e pensamentos, sem cuidado do que deve pensar ou meditar. Contente-se com uma amorosa e tranquila advertência em Deus, sem outra solicitude nem esforço, e até sem desejo de achar n’Ele gosto ou consolação. Todas estas di-ligências, com efeito, inquietam e distraem a alma da sossegada quietude e suave repouso de contemplação que do Senhor aqui recebe.
5. Por mais escrúpulos que venham à alma, de perder tempo ou achar que seria bom agir de outro modo, — pois na oração nada pode fazer nem pensar, — convém suportar e ficar quieta, como se fosse à oração para estar à sua vontade, em liberdade de espírito. Se quiser fazer algo com as potências interiores, perturbará a ação divina, e perderá os bens que Deus está imprimindo e assentando no seu íntimo, por meio daquela paz e ócio da alma. É como se um pintor estivesse a pintar e colorir um rosto, e este quisesse mover-se para ajudar em alguma coisa: com isto, não deixaria o pintor trabalhar, perturbando-lhe a obra. Assim, quando a alma sente inclinação para ficar em paz e quietude interior, qualquer operação, ou afeto, ou advertência, que então queira admitir, só serve para distraí-la e inquietá-la, causando secura e vazio no sentido. Quanto mais pretende apoiar-se em afetos ou notícias, tanto maior é a falta que deles sente, pois doravante não os poderá achar nesta via.
6. Convém, portanto, a esta alma, não se impressionar com a perda das potências; deve até gostar de que se percam logo, a fim de não perturbarem a operação da contemplação infusa que Deus lhe vai concedendo. Deste modo a alma poderá receber essa graça com maior abundância de paz, chegando a arder e inflamar-se no espírito de amor que esta obscura e secreta contemplação traz consigo e ateia. De fato, a contemplação não é mais que uma infusão secreta, pacífica e amorosa de Deus; e, se a alma consente, logo é abrasada em espírito de amor, como ela mesma o dá a entender no verso se-guinte que é assim: De amor em vivas ânsias inflamada.

Trecho de: A NOITE ESCURA DA ALMA de São João da Cruz

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