"O FILHO DO HOMEM SERÁ TRAÍDO"












Fora da cidade de Jerusalém, ao noroeste, pertinho das muralhas, erguiam-se defronte um do outro dois cabeços rochosos, dois montículos de quatro a cinco metros de altura, separados por estreito valado de vinte e cinco metros de largura aproximadamente, coberto de oliveiras, de figueiras e de jardins. O montículo mais próximo do baluarte rematava num cume em forma de crânio arredondado, nu, bravio; era aí que se executavam os condenados à morte. Chamava-se a esse cume desolado o Calvário; pertencia à cidade.
Em frente mesmo desse Calvário, o montículo que emergia dos jardins e das árvores, do outro lado do valado, havia, talhado numa rocha viva dos flancos, um túmulo composto, consoante o uso, dum átrio no fundo do qual se abria um vão muito baixo que dava para uma pequena câmara sepulcral, ocupada na metade da largura por um banco rochoso onde se depunha o corpo amortalhado e aromatizado; pertencia este túmulo, bem como os jardins contíguos, a um certo José de Arimatéa.
Foi nesse espaço estreito, no meio desses jardins, perto daquelas muralhas de Jerusalém onde se abria a Porta Judiciária, foi naquele cimo nu, arredondado como um crânio, foi nesse sepulcro, que em três dias se verificaram os dois maiores acontecimentos que jamais se poderão desenrolar na humanidade: a Morte e a Ressurreição do Cristo.
Na vida do Filho do Homem tudo deve confinar com esses dois cimos sagrados. Muito havia que Deus, cuja Providência se estende da minúcia ao conjunto, preparara esse cenário de um drama sangrento e glorioso. Aqueles dois bruscos lances de rochas no meio da planície, de há muito os olhava Deus como o lugar terrível e bendito onde
haveria de esquecer, ante o Sangue que devia inundar o primeiro e a glória que devia resplandecer do segundo, todo o Seu furor, as longas iniquidades dos homens e as funestas conseqüências da desobediência de Adão.
Nos seus passeios ao redor da cidade, nas caminhadas por aquela planície, Jesus, rodeado dos discípulos, devia ter muitas vezes passado perto daquela rocha selvagem do Gólgota. Com que olhar devia fixá-la? “Eu vo-lo digo: tudo quanto os profetas anunciaram vai cumprir-se. O Filho do Homem será traído, entregue aos gentios,
cuspido, flagelado e crucificado”. E os olhos se lhe pousavam sobre o cimo do Calvário; mas “ressuscitará ao terceiro dia”, e através das árvores que o circundavam com o seu pálido emaranhado de folhagens de oliveiras, divisava o túmulo, a pedra vitoriosamente
abatida e Ele a surgir na luz esplendida das auroras.
Per crucem ad lucem: era pela Cruz que Ele devia chegar à glória.
O Calvário permanecerá, pois, para Ele, durante a vida mortal, como o ponto culminante de toda a Sua existência. Nascera para subi-lo, e subi-lo como Vítima. Porque Jesus é antes tudo Vítima Expiatória: Ele o sabe, Ele o sente, Ele o quis, e Seu Pai O encara primeiramente como tal.
É o primeiro papel do Cristo, a Sua primeira razão de ser: satisfazer a Justiça de Deus, reparar o ultraje feito a Deus, salvar a honra de Deus; quase se poderia dizer que a salvação dos homens vem depois; além do que, o Pai bem entende primeiramente de satisfazer a Sua Justiça tremenda, e Jesus terá de “pagar inteirinha a dívida sem
remissão e sem misericórdia” (Bossuet, Segundo Sermão sobre a Paixão).

Durante mais de 4000 anos preparar-se-á esta suprema expiação. Como nessas tempestades que se formam lentamente, em que há primeiro nuvens sombrias, clarões aterradores e regougos longínquos, as cóleras divinas se amontoam de século em século
através da humanidade culpada.
Por vezes o braço de Deus sai como um relâmpago e traça a grandes traços, bruscos e rápidos, um esboço do Seu furor. Conta Ele acabar mais tarde: a princípio são simples bosquejos trágicos ou sangrentos até nos animais. Assim a vaca avermelhada que imolavam pelo povo no Monte das Oliveiras, em frente ao Templo; assim aquele bode
impuro de testa carregada de borlas e fitas vermelhas – o vermelho era a cor do pecado – que enxotavam para o deserto através do Vale do Cedron, porque estava coberto das iniqüidades de todos. Assim ainda aquele cordeiro que degolam todas as tardes no Templo pelas três horas.
Depois, o desígnio firma-se sobre homens; assim Isaac, o filho único, querido, em quem repousam as longas esperanças de seu pai; levam-no à montanha, e esta montanha é tão perto do Calvário!... É a rocha de Moriah, onde devia edificar-se o Templo. Ele próprio carrega a lenha do sacrifício, e é o pai quem o vai imolar: que lúgubre quadro!
É ainda Jó, caindo do pleno poderio à miséria de um monturo, à porta da sua cidade ou de sua casa!
Jonas, que atiram ao mar, de quem os homens se desvencilham como de um peso que atiça a cólera divina...

E no meio dessas figuras trágicas são exclamações que parece indicarem uma cólera opressiva.
Maledictus a Deo est qui pendet in lingno (Deut 21, 23): maldito o que pende da cruz!
Ó Deus! Que querem dizer estes enigmas?
Vimo-lo, vimo-lo, exclama súbito e mais abertamente Isaías, é um leproso, um desamparado, um abandonado, não se lhe pode olhar, é um verme da terra, um fustigado de Deus (Isaías 53, 4).
E este clamor gela de espanto quantos o ouvem.
Afinal, cumpriram-se os tempos: eis a Vítima real e esperada. O Cristo nasceu!
Que cioso cuidado põe Deus em conservá-lo antes que suba ao Calvário! Há a preparação remota: é como um envolvimento progressivo da Justiça irritada.
Nasce Ele: uma manjedoura de animais Lhe serve de berço; uma gruta fria, durante a noite, é-Lhe o primeiro teto; depois o exílio, a perseguição, o olvido; depois o trabalho necessário para comer o pão quotidiano. O suor da oficina, o penoso labor do carpinteiro. E depois são os outros e esfalfantes labores do apostolado.
Tudo é já instrumento de vingança nas mãos de Deus: a poeira das estradas, as tempestades do lago, a fome, a sede no deserto de Jericó durante quarenta dias, a fadiga no poço de Jacó. Há, sim, milagres que esplendem: são as flores com que Deus coroa a Vítima.

Eis aqui com efeito o derradeiro triunfo: passeiam regiamente essa Vítima de Bethfagé a Jerusalém, onde Ela entra pela Porta Dourada: Hosannah Filio David!
Então está tudo pronto para a rude ascensão do Calvário.
Instrumentos do suplício: desde os de primeira escolha, como Judas, Herodes, Caifás e Pilatos, até os de baixo estofo, como a mão de um criado, o escarro de um soldado.
Torturas do Coração: pulverização da honra, esmagamento do ser humano, nada é esquecido; todas as criaturas são convocadas para aí trabalharem, cada uma à sua hora.
Por fim, é a última, a áspera subida do Gólgota.
E por sobre aquele cume, o meigo, o sangrento semblante do Senhor, a erguer olhos súplices para o alto e podendo dizer com a certeza de ser atendido:
Pater, dimitte illis.
Meu Deus, perdoai-lhes. Eis todo o drama da Paixão.
Eu vou seguir, ó Jesus, passo a passo a Vossa esteira sangrenta até esse alto cimo. Quero tocar cada um dos instrumentos de suplício que Vós a ele encaminharam.

Quero pesar cada uma das torturas que Vos trituraram o Coração; e, quando, chegado ao termo dessa estrada real e dolorosa, eu vir inclinar-se sobre mim o semblante do Senhor, levarei estampada essa doce e essa sangrenta imagem.
Marcada deste cunho divino, a minha vida se transmudará, eu não olharei mais a terra, subirei mais alto que o Calvário... lá onde os Vossos olhos moribundos procuravam e achavam a glória satisfeita do Pai.
Deus, respice in faciem Christi tui (Sl 43, 10). Respice in me et miserere mei (Sl 24,16).
Meu Deus, olhai primeiro o semblante do Senhor, Vosso Cristo... e depois, olhai mais abaixo e dignai-Vos compadecer-Vos de mim. Assim seja.






A SUBIDA
DO
CALVÁRIO

Pelo
Padre Luís Perroy. S. J.
Editora Vozes
1957














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